segunda-feira, 17 de novembro de 2008

PERGUNTAS E PROBLEMAS


Sobre a expiação e a prova.

Moulins,8dejulhode1863.

Senhor e venerável mestre,

Venho submeter à vossa apreciação uma questão que foi discutida em nosso pequeno
grupo e que não pudemos resolver por nossas próprias luzes; os próprios Espíritos,
que consultamos, não responderam bastante categoricamente para nos tirar da dúvida.

Redigi uma pequena nota, que tomo a liberdade de vos endereçar, nas quais reuni os
motivos de minha opinião pessoal, que difere da de vários de meus colegas. A opinião
destes últimos é de que a expiação tem lugar mesmo durante a encarnação, apoiando-se
sobre o fato de que esta expressão foi empregada em muitas comunicações, e notadamente
em O Livro dos Espíritos.

Venho, pois, vos rogar serdes bastante bom para nos dar a vossa opinião sobre esta
questão. Vossa decisão será lei para nós, e cada um de nós fará de boa vontade o sacrifício
de sua maneira de ver para se alinhar sob a bandeira que plantastes e que sustentais
de maneira tão firme e tão sábia.

Recebei, senhor e caro mestre, etc.

"T. T."

'Várias comunicações, emanando de Espíritos diferentes, qualificam indistintamente
de expiações ou de provas, os males e as tribulações formando o destino de cada um de
nós, durante nossa encarnação sobre esta Terra. Resulta dessa aplicação de duas palavras,
muito diferentes em seu significado, a uma mesma idéia, a uma certa confusão,
pouco importante, sem dúvida, para os Espíritos desmaterializados, mas que dá lugar,
entre os encarnados, a discussões que seria bom fazer cessar por uma definição clara e
precisa e explicações fornecidas pelos Espíritos superiores, as quais fixariam este ponto
de doutrina, de modo irrevogável.

'Tomando primeiro essas duas palavras em seu sentido absoluto, parece que a expiação
seria o castigo, a pena imposta para o resgate de uma falta, com perfeito conhecimento,
da parte do culpado punido, da causa desse castigo, quer dizer, da falta a expiar.

Compreende-se que a expiação, neste sentido, é sempre imposta por Deus.

"A prova não implica nenhuma idéia de reparação, pode ser voluntária ou imposta,
mas não é a conseqüência rigorosa e imediata das faltas cometidas.

"A prova é um meio de se constatar o estado de uma coisa para reconhecer se ela é
de boa qualidade. Assim, faz-se sofrer uma prova a um cordame, a uma ponte, a uma
peça de artilharia, não por causa de seu estado anterior, mas para assegurar-se de que
são próprios para o serviço ao qual estão destinados.

"Do mesmo modo, por extensão, chamam-se provas da vida, o conjunto dos meio físicos
e morais que revelam a existência, ou a ausência, das qualidades da alma, que estabelecem
sua perfeição ou os progressos que fez para essa perfeição final.

Parece, pois, lógico admitir-se a expiação propriamente dita, e no sentido absoluto
dessa palavra, ocorre na vida espiritual depois da desencarnação ou morte corpórea; que
pode ser mais ou menos longa, mais ou menos penosa, segundo a gravidade das faltas;
mas que ela se completa no outro mundo e termina sempre por um ardente desejo de
receber uma nova encarnação, durante a qual as provas escolhidas ou impostas deverão
dar à alma o progresso para a perfeição que suas faltas anteriores impediram de se cumprirem.

"Assim, pois, não conviria admitir que há expiação sobre a Terra, mesmo que ela
possa existir excepcionalmente, porque seria preciso admitir também o conhecimento das
faltas punidas; ora, esse conhecimento não existe senão na vida de além-túmulo. A expiação
sem esse conhecimento seria uma barbárie sem utilidade e não concordaria nem
com a justiça nem com a bondade de Deus.

"Pode-se conceber, durante a encarnação, quanto de provas, porque, quaisquer que
sejam os males e as tribulações desta Terra, é impossível considerá-los como podendo
constituir uma expiação suficiente para faltas de qualquer gravidade. Pensa-se que um
culpado deferido à justiça dos homens se encontraria bem punido se fosse condenado a
viver como o menos feliz de nós? Não exageremos, pois, a importância dos males desta
Terra para nos fazer um mérito o tê-los suportado. A prova consiste mais na maneira pela
qual os males foram suportados do que em sua intensidade que, como a felicidade terrestre,
é sempre relativa para cada indivíduo.

"Os caracteres distintivos da expiação e da prova são que a primeira é sempre imposta
e que sua causa deve ser conhecida daquele que a suporta, ao passo que a segunda
pode ser voluntária, quer dizer, escolhida pelo Espírito, ou imposta pelo próprio
Deus, na falta de escolha; além disso, concebe-se muito bem sem causa conhecida, uma
vez que ela não é, necessariamente, a conseqüência das faltas passadas.

"Em uma palavra: A expiação cobre o passado; a prova abre o futuro.

"O número de julho da Revista Espírita contém um artigo intitulado: Expiação terrestre,
que parece contrário à opinião emitida acima; no entanto, lendo atentamente, ver-se-á
que a expiação verdadeira ocorreu durante a vida espírita, e que a posição que Max ocupou
durante sua última encarnação não era senão o gênero de provas que escolheu ou
que lhe foi imposto, e do qual saiu vitorioso; mas que, durante toda essa encarnação, ignorante
de sua posição anterior, não podia aproveitar nada de uma expiação sem objeto.

"Esta questão, talvez, seja antes uma questão de palavras do que de princípio. Com
efeito, foi dito freqüentemente: "Não vos ligueis às palavras, vede o fundo do pensamento."

Em todos os casos, convém, para nós, que nos entendamos no meio das palavras, de
estar bem fixados sobre o sentido que a elas se dá."

Resposta. - A distinção estabelecida pelo autor da notícia acima, entre o caráter da
expiação e o das provas é perfeitamente justa, e, no entanto, não saberíamos partilhar
sua opinião no que concerne à aplicação dessa teoria à situação do homem sobre a Terra.

A expiação implica necessariamente a idéia de um castigo mais ou menos penoso,
resultado de uma falta cometida; a prova implica sempre a de uma inferioridade real ou
presumida, porque aquele que chegou ao ponto culminante, ao qual aspira, não tem mais
necessidade de provas. Em certos casos, a prova se confunde com a expiação, quer dizer
que a expiação pode servir de prova, e reciprocamente. O candidato que se apresenta
para obter um grau, sofre uma prova; se fracassa, lhe é preciso recomeçar um trabalho
penoso; esse novo trabalho é a punição da negligência levada no primeiro; a segunda
prova torna-se assim uma expiação. Para o condenado a quem se faz esperar um abrandamento
ou uma comutação conduzindo-se bem, a pena é, ao mesmo tempo, uma expiação
por sua falta, e uma prova para a sua sorte futura; se, em sua saída da prisão, não
estiver melhor, a prova é nula, e um novo castigo trará uma nova prova.

Se consideramos agora o homem sobre a Terra, vemos que ele aqui sofre males de
todas as espécies e freqüentemente cruéis; esses males têm uma causa; ora, a menos de
atribuí-las ao capricho do Criador, é-se forçado a admitir que essa causa está em nós
mesmos, e que as misérias que experimentamos não podem ser o resultado de nossas
virtudes; portanto, elas têm sua fonte em nossas imperfeições. Que um Espírito se encarne
sobre a Terra no seio da fortuna, das honras e de todos os gozos materiais, poder-se-á
dizer que sofre a prova do arrastamento; para aquele que cai na infelicidade por sua má
conduta ou sua imprevidência, é a expiação de suas faltas atuais, e pode-se dizer que é
punido por onde pecou. Mas que se dirá daquele que, desde seu nascimento, luta com as
necessidades e as privações, que arrasta a existência miserável e sem esperança de melhoria,
que sucumbe sob o peso de enfermidades congênitas, sem ter ostensivamente
nada feito para merecer uma semelhante sorte? Que isso seja uma prova ou uma expiação,
a sua posição não é menos penosa, e isso não seria mais eqüitativo do ponto de vista
de nosso correspondente, uma vez que se o homem não se lembra da falta, não se
lembra mais de ter escolhido a prova. É preciso, pois, procurar em outra parte a solução
da questão.

Todo efeito tendo uma causa, as misérias humanas são efeitos que devem ter uma
causa; se essa causa não está na vida atual, deve estar na vida anterior. Além disso, admitindo
a justiça de Deus, esses efeitos devem ter uma relação mais ou menos íntima
com os atos precedentes, dos quais são, ao mesmo tempo, o castigo pelo passado, e a
prova para o futuro. São expiações nesse sentido de que são a conseqüência de uma
falta, e provas em relação ao proveito que dela se retira. A razão nos diz que Deus não
pode ferir um inocente; portanto, se somos feridos, é que não somos inocentes: o mal que
sentimos é o castigo, a maneira pela qual o suportamos, é a prova.

Mas ocorre, freqüentemente, que, a falta não se achando nesta vida, acusa-se a justiça
de Deus, nega-se sua bondade, duvida-se mesmo de sua existência; aí, precisamente,
está a prova mais escabrosa: a dúvida sobre a divindade. Quem admite um Deus soberanamente
justo e bom deve-se dizer que ele não pode agir senão com sabedoria,
mesmo nesse caso que não compreendemos, e que se sofremos uma pena, é que a merecemos;
portanto, é uma expiação. O Espiritismo, pela revelação da grande lei da pluralidade
das existências,- levanta completamente o véu sobre o que essa questão deixava
de obscuro; nos ensina que, se a falta não foi cometida nesta vida, o foi em uma outra, e
que assim a justiça de Deus segue seu curso nos punindo por onde nós pecamos.

Vem em seguida a séria questão do esquecimento que, segundo nosso correspondente,
dá aos males da vida o caráter de expiação. É um erro; dai-lhe o nome que quiserdes,
não fareis que não sejam a conseqüência de uma falta; se o ignorais, o Espiritismo
vo-lo ensina. Quanto ao esquecimento das próprias faltas, não tem as conseqüências que
lhe atribuís. Demonstramos em outra parte que a lembrança precisa dessa faltas traria
inconvenientes extremamente graves, em que isso nos perturbaria, nos humilharia aos
nossos próprios olhos e aos de nossos próximos; que nos traria uma perturbação nas relações
sociais, e que, por isso mesmo, entravaria nosso livre arbítrio. De um outro lado, o
esquecimento não é tão absoluto quanto se supõe; não ocorre senão durante a vida exterior
de relação, no próprio interesse da Humanidade; mas a vida espiritual não tem solução
de continuidade; o Espírito, seja na erraticidade, seja em seus momentos de emancipação,
se lembra perfeitamente, e essa lembrança lhe deixa uma intuição que se traduz
pela voz da consciência que o adverte do que deve fazer ou não fazer; se não a escuta, é,
pois, culpado. O Espiritismo dá, além disso, ao homem um meio de remontar ao seu passado,
senão nos atos precisos, pelo menos nos caracteres gerais desses atos que pesaram
mais ou menos sobre a vida atual. Das tribulações que sofre, expiações ou provas,
deve concluir que foi culpado; da natureza dessas tribulações, ajudado pelo estudo de
suas tendências instintivas, e apoiando-se sobre o princípio de que a punição mais justa é
aquela que é a conseqüência de sua falta, pode deduzir disso seu passado moral; suas
más tendências lhe mostram o que resta de imperfeito a corrigir em si. A vida atual é para
ele um novo ponto de partida; aqui chega rico ou pobre de boas qualidades; basta-lhe,
pois, estudar a si mesmo para ver o que lhe falta, e se dizer: "Se sou punido, é que pequei,"
e a própria punição lhe ensinará o que fez. Citemos uma comparação:

Suponhamos um homem condenado aos trabalhos forçados por tantos anos e nisso
sofrendo um castigo especial, mais ou menos rigoroso, segundo sua falta: suponhamos,
além disso, que, entrando na prisão, perde a lembrança dos atos que ali o conduziram;
não se poderá dizer: "Se estou na prisão, é que fui culpado, porque aqui não se colocam
as pessoas virtuosas; portanto, tratemos de nos tornar bons para não reentrar aqui quando
dela tivermos saído." Quer saber o que fez? Estudando a lei penal, saberá quais são
os crimes que para lá o conduzirão, porque não se é posto a ferro por uma travessura; da
duração e da severidade da pena, disso concluirá o gênero daqueles que deveu cometer;
para deles ter uma idéia mais exata, não terá senão que estudar aqueles para os quais se
sente instintivamente, arrastado; saberá, pois, o que deve evitar doravante para conservar
sua liberdade, e nisso será mais estimulado pelas exortações dos homens de bem, encarregados
de instruí-lo e de dirigi-lo no bom caminho. Se disso não se aproveita, sofre-lhe
as conseqüências. Tal é a situação do homem sobre a Terra, onde, não mais do que o
condenado à prisão não pode estar colocado por suas perfeições, uma vez que ali é infeliz
e forçado ao trabalho. Deus lhe multiplica os ensinamentos proporcionais ao seu adiantamento;
adverte-o, sem cessar, fere-o mesmo para despertá-lo de seu torpor, e aquele
que persiste em seu endurecimento não pode se desculpar sobre sua ignorância.

Em resumo, se certas situações da vida humana têm, mais particularmente, o caráter
de provas, outras têm, incontestavelmente, o do castigo, e todo castigo pode servir de
prova.

É um erro crer que o caráter essencial da expiação seja o de ser imposto; vemos todos
os dias na vida expiações voluntárias, sem falar dos monges que se maceram e se
fustigam com a disciplina e a camisa de pele de cabra. Não há, pois, nada de irracional
em admitir que um Espírito, na erraticidade, escolha ou solicite uma existência terrestre
que o coloque de modo a reparar seus erros passados. Fosse essa existência mesmo
imposta, por isso não seria menos justa, apesar da ausência momentânea de lembrança,
pelos motivos acima desenvolvidos. As misérias deste mundo são, pois, expiações pelo
seu lado efetivo e material, e provas pelas suas conseqüências morais. Qualquer que seja
o nome que se lhes dê, o resultado deve ser o mesmo: a melhoria. Em presença de um
objetivo tão importante, seria pueril fazer uma questão de princípio de uma questão de
palavra; isso provaria que se liga mais importância às palavras do que à coisa.

Temos o prazer de responder às perguntas sérias e elucidá-las, quando isso é possível.
Tanto a discussão é útil com as pessoas de boa fé, que estudaram e querem aprofundar
as coisas, porque é trabalhar para o progresso da ciência, tanto é ociosa com aqueles
que julgam sem conhecer e querem saber sem se darem ao trabalho de aprender.
Revista Espírita, setembro de 1863, Allan Kardec

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