quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

O ESPIRITISMO SEM OS ESPÍRITOS - Allan Kardec

 
Vimos recentemente uma seita tentar se formar, ostentando por bandeira: A negação da prece. Acolhida, em seu início, por um sentimento geral de reprovação, nem mesmo viveu. Os homens e os Espíritos se uniram para repelir uma doutrina que era, ao
mesmo tempo, uma ingratidão e uma revolta contra a Providência. Isto não era difícil, porque, ferindo o sentido íntimo da imensa maioria, trazia em si o seu próprio princípio destruidor. (Revista de janeiro de 1866). Eis agora uma outra que tenta sobre um novo
terreno; ela tem por divisa: Não mais comunicações dos Espíritos. É bastante singular que esta opinião seja hoje preconizada por alguns daqueles que outrora exaltaram a importância e a sublimidade dos ensinos espíritas, e se glorificavam daquilo que eles
mesmos recebiam como médiuns. Tem ela mais chance de sucesso que a precedente? É o que iremos examinar em algumas palavras.
Esta doutrina, podendo se dar esse nome a uma opinião restrita a algumas individualidades, se funda sobre os dados seguintes:
 
"Os Espíritos que se comunicam não são senão Espíritos comuns que não aprenderam, até hoje, nenhuma verdade nova, e que provam a sua incapacidade não saindo das banalidades da moral. O critério que se pretende estabelecer sobre a concordância de seus ensinos é ilusório, em conseqüência de sua insuficiência. Cabe ao homem sondar os grandes mistérios da Natureza, e submeter o que dizem ao controle de sua própria razão. Suas comunicações não podendo nada nos ensinar, as proscrevemos de nossas reuniões. Discutiremos entre nós; procuraremos e nos decidiremos, em nossa sabedoria, são princípios que devem ser aceitos ou rejeitados, sem recorrer ao
consentimento dos Espíritos."
 
Anotemos que não se trata de negar o fato das manifestações, mas de estabelecer a superioridade do julgamento do homem, ou de alguns homens, sobre o dos Espíritos; em uma palavra, de livrar o Espiritismo do ensino dos Espíritos: as instruções destes últimos
estando abaixo daquilo que pode a inteligência dos homens.
 
Esta doutrina conduz a uma singular conseqüência, que não daria uma alta idéia da superioridade da lógica do homem sobre a dos Espíritos. Sabemos, graças a estes últimos, que aqueles de ordem mais elevada pertenceram à Humanidade corpórea que
desde muito tempo a ultrapassaram, como o general ultrapassou a classe do soldado da qual tinha saído. Sem os Espíritos, estaríamos ainda na crença de que os anjos são criaturas privilegiadas, e os demônios criaturas predestinadas ao mal pela eternidade.
 
"Não, dir-se-á, porque houve homens que combateram essa idéia." Seja; mas quem eram esses homens, senão os Espíritos encarnados? Qual influência a sua opinião isolada teve sobre a crença das massas? Perguntai a qualquer um se ele conhece somente de nome a
maioria desses grandes filósofos? Ao passo que os Espíritos, vindo sobre toda a superfície da Terra se manifestar, ao mais humilde como ao mais poderoso, a verdade se propagou com a rapidez do relâmpago.
 
Os Espíritos podem se dividir em duas grandes categorias: os que, chegados ao mais alto ponto da escala, deixaram definitivamente os mundos materiais, e aqueles que, pela lei da reencarnação, pertencem ainda ao turbilhão da Humanidade terrena. Admitamos que só estes últimos têm o direito de se comunicar com os homens, o que é uma questão: entre eles há os que, quando vivos, foram homens esclarecidos, cuja opinião teve autoridade, e que se estaria feliz em consultar se vivessem ainda. Ora, da doutrina acima resultaria que esses mesmos homens superiores tornaram-se nulidades ou mediocridades passando no mundo dos Espíritos, incapazes de nos dar uma instrução de algum valor, ao passo que se inclinaria respeitosamente diante deles se se apresentassem em carne e osso nas próprias assembléias onde se lhes recusa escutar como Espíritos. Disto resulta ainda que Pascal, por exemplo, não é mais uma luz desde
que é Espírito; mas que, se ele reencarnasse em Pedro ou Paulo, necessariamente com o mesmo gênio, uma vez que nada teria perdido, seria um oráculo. Esta conseqüência é de tal modo rigorosa, que os partidários desse sistema admitem a reencarnação como uma
das maiores verdades. Seria preciso disso induzir, enfim, que aqueles que colocam, de muito boa-fé nós o supomos, sua própria inteligência tão acima da dos Espíritos, serão eles mesmos as nulidades ou as mediocridades, cuja opinião será sem valor; de tal sorte
que seria preciso crer naquilo que dizem, hoje que vivem, e que não seria preciso mais crer amanhã, quando estarão mortos, então mesmo que viessem dizer a mesma coisa, e ainda menos se viessem dizer que se enganaram.
 
Sei que se objeta a grande dificuldade da constatação da identidade. Esta questão foi amplamente tratada para que seja supérfluo nela retornar. Seguramente, não podemos saber, por uma prova material, se o Espírito que se apresente sob o nome de Pascal é
realmente o do grande Pascal. Que nos importa, se diz boas coisas! Cabe a nós pesar o valor de suas instruções, não à forma da linguagem, que se sabe, freqüentemente, levar a marca de inferioridade do instrumento, mas à grandeza e à sabedoria dos pensamentos.
 
Um grande Espírito que se comunique por um médium pouco letrado é como um hábil calígrafo que se serve de má caneta; o conjunto da escrita levará a marca de seu talento, mas os detalhes de execução, que não dependem dele, serão imperfeitos. Jamais o Espiritismo disse que seria preciso fazer abnegação de seu julgamento, e submeter-se cegamente ao que dizem os Espíritos; são os próprios Espíritos que nos dizem para passar todas as suas palavras pelo cadinho da lógica, ao passo que certos encarnados dizem: "Não creiais senão naquilo que dizemos, e não creiais no que dizem os Espíritos." Ora, como a razão individual está sujeita a erro, e que o homem, muito geralmente, é levado a tomar sua própria razão e suas idéias pela única expressão da verdade, aquele que não tem a orgulhosa pretensão de se crer infalível a refere à apreciação da maioria. Por isto abdicou de sua opinião? De nenhum modo; é perfeitamente livre de crer que só ele tem a razão contra todos, mas não impedirá a opinião da maioria de prevalecer, e de ter, em definitivo, mais autoridade do que opinião de um só ou de alguns.
 
Examinemos agora a questão sob um outro ponto de vista. Quem fez o Espiritismo? É uma concepção humana pessoal? Todo o mundo sabe o contrário. O Espiritismo é resultado do ensino dos Espíritos; de tal sorte que, sem as comunicações dos Espíritos, não haveria Espiritismo. Se a Doutrina Espírita fosse uma simples teoria filosófica eclodida no cérebro humano, não teria senão valor de uma opinião pessoal; saída da universalidade do ensino dos Espíritos, ela tem o valor de uma obra coletiva, e foi por isto mesmo que em tão pouco tempo se propagou por toda a Terra, cada um recebendo por si mesmo, ou por suas relações íntimas, instruções idênticas e a prova da realidade das manifestações.
 
Pois bem! é em presença deste resultado patente, material, que se tenta erigir em sistema a inutilidade das comunicações dos Espíritos. Convenhamos que se elas não tivessem a popularidade que adquiriram, não seriam atacadas, e que é a prodigiosa vulgarização dessas idéias que suscita tantos adversários ao Espiritismo. Aqueles que rejeitam hoje as comunicações não se parecem com essas crianças ingratas que renegam e desprezam seus pais? Não é ingratidão para com os Espíritos, a quem devem o que sabem? Não é se servir daquilo que deles aprenderam para combatê-los, retornar contra eles, contra seus próprios pais, as armas que nos deram? Entre os Espíritos que se manifestam, não é do Espírito de um pai, de uma mãe, dos seres que nos são mais caros, que se recebem essas tocantes instruções que vão diretamente ao coração? Não é a eles que se deve o ter sido arrancado à incredulidade, às torturas da dúvida sobre o futuro, e é então que se goza do benefício, que se despreza a mão do benfeitor!
 
Que dizer daqueles que, tomando sua opinião pela de todo o mundo, afirmam seriamente que, agora, em nenhuma parte se quer comunicações? Estranha ilusão! que um olhar lançado ao redor deles bastaria para fazer desvanecer-se. De seu lado, que devem pensar os Espíritos que assistem às reuniões onde se discute se se devem condescender em escutá-los, se se deve ou não lhes permitir excepcionalmente a palavra para comprazer àqueles que tiveram a fraqueza de ter suas instruções? Ali se encontram, sem dúvida, Espíritos diante dos quais cairiam de joelhos se, nesse momento, se apresentassem à sua visão. Pensou-se no preço que se poderia pagar uma tal ingratidão?
 
Tendo os Espíritos a liberdade de se comunicarem, sem relação com o grau de seu saber, disto resulta uma grande diversidade no valor das comunicações, como nos escritos, em um povo onde todo o mundo tem a liberdade de escrever, e onde certamente todas as produções literárias não são obras-primas. Segundo as qualidades individuais dos Espíritos, há, pois, comunicações boas pelo fundo e pela forma, outras que são boas pelo fundo e más pela forma, outras, enfim, que não valem nada, nem pelo fundo nem pela forma; cabe a nós escolher. Não seria mais racional rejeitá-las todas porque são más, do que o seria de proscrever todas as publicações porque há escritores que dão baixezas. Os melhores escritores, os maiores gênios, não têm partes fracas em suas obras? Não se fazem coletâneas do que produziram de melhor? Façamos o mesmo com respeito às produções dos Espíritos; aproveitemos o que há de bom e rejeitemos o que é mau; mas para arrancar o joio, não arranquemos o bom grão.
 
Consideramos, pois, o mundo dos Espíritos como o duplo do mundo corpóreo, como uma fração da Humanidade, e dizemos que não devemos mais desdenhar de ouvi-los, agora que estão desencarnados, que não o tivéssemos feito então quando estávamos encarnados; eles estão sempre em nosso meio, como outrora; somente estão atrás da cortina, em lugar de estar diante: eis toda a diferença.
Mas, dir-se-á, qual é a importância dos ensinos dos Espíritos, mesmo naquilo que há de bom, se não ultrapassa aquilo que os homens podem saber por si mesmos? É bem certo que não nos ensinam nada de mais? Em seu estado de Espírito não vêem o que não podemos ver? Sem eles, conheceríamos seu estado, sua maneira de ser, suas sensações? conheceríamos, como o conhecemos hoje, esse mundo onde estaremos talvez amanhã? Se esse mundo não tem mais para nós os mesmos terrores, se o encaramos sem temer a passagem que a ele conduz, não é a eles que o devemos? Esse mundo está completamente explorado? Cada dia não nos revelam dele uma nova face? e não é nada saber onde se vai, e o que se pode ser saindo daqui? Outrora ali se entrava tateando e tremendo, como num abismo sem fundo; agora esse abismo está resplendente de luz, e se está entre felizes; e há quem ouse dizer que o Espiritismo nada nos ensinou!
(Revista Espírita, agosto de 1865, página 225: "O que ensina o Espiritismo.") Sem dúvida, o ensino dos Espíritos tem seus limites, não se pode pedir-lhe o que não pode dar, o que está em sua essência, em seu objetivo providencial, ele dá sempre àquele que sabe procurar; mas, tal qual é, dele fizemos todas as aplicações? Antes de lhe pedir mais, sondamos a profundeza dos horizontes que nos descobre? Quanto à sua importância, ela se afirma por um fato material, patente, gigantesco, desconhecido nos fatos da história: é que apenas em sua aurora, ele revoluciona já o mundo e põe em emoção os poderes da Terra. Qual é o homem que teria tido este poder?
O Espiritismo tende à reforma da Humanidade pela caridade; não é, pois, de se admirar que os. Espíritos preguem sem cessar a caridade; pregá-la-ão ainda por muito tempo enquanto não tiver desenraizado do coração dos homens o egoísmo e o orgulho.
Se é que nele acham as comunicações inúteis, porque repetem sem cessar as lições de moral, é preciso felicitá-los, se são bastante perfeitos para delas não terem mais necessidade; mas devem pensar que aqueles que têm tanto mais confiança em seu próprio mérito e que têm no coração se melhorarem, não deixam de receber os bons conselhos. Não procureis, pois, a lhes tirar essa consolação.
 
Tem esta doutrina chances de prevalecer? As comunicações dos Espíritos, como dissemos, fundaram o Espiritismo. Repeli-las depois de tê-las aclamado é querer solapálo por sua base, tirar-lhe a pedra em que se assenta; tal não pode ser o pensamento dos Espíritas sérios e devotados, porque isto seria absolutamente como aquele que se dissesse cristão negando o valor dos ensinos do Cristo, sob o pretexto de que sua moral é idêntica à de Platão. Foi nessas comunicações que os Espíritas encontraram a alegria, a consolação, a esperança; foi por elas que compreenderam a necessidade do bem, da resignação, da submissão à vontade de Deus; foi por elas que suportaram com coragem as vicissitudes da vida, por elas é que não há mais separação real entre eles e os objetos de suas mais ternas afeições. Não é se equivocar sobre o coração humano, crendo que possa renunciar a uma crença que lhe faz a felicidade!
 
Repetimos aqui o que dissemos a propósito da prece: Se o Espiritismo deve ganhar em influência, é aumentando a soma das satisfações morais que ele proporciona. Que aqueles que o achem insuficientes tal qual é se esforcem em dar mais do que ele; mas não é em dando menos, tirando-lhe o que nele faz o encanto, a força e a popularidade que o suplantarão.
 
Revista Espírita, 1966, Allan Kardec.

2 comentários:

Mara Virginia disse...

Olá, estava lendo o texto e meditando que tudo que vemos, ouvimos , lemos, tem que passar pelo crivo da razão. Assim, como temos companheiros encarnados e desencarnados lutando para manter as casas espíritas, o outro lado, estão lutando para derrubar essas mesmas casas, tentativa da negação dos preceitos espiritas houve e haverá sempre, cabe a nós seguidores neutralizar essas ações usando o crivo da razão e acredito que apenas os companheiros menos avisados ou os que comungam dessas ideias poderão aplaudir tamanho disparates como o citado "Os Espíritos que se comunicam não são senão Espíritos comuns que não aprenderam, até hoje, nenhuma verdade nova, e que provam a sua incapacidade não saindo das banalidades da moral." Temos espíritos de diversas categorias na hierarquia espiritual, o que precisamos é analisar se o que eles comunicam estão dentro dos preceitos da caridade, do bem e do amor ao próximo.
Muita paz e parabéns pelo texto e pelo blog.

Anônimo disse...

Mara

Há de termos o bom senso, nem todos os espíritos que se comunicam conosco são bons ou superiores, também não são todos iguais ou inferiores. Hoje conversando com um amigo ele me perguntava mais ou menos isso, aqueles que nos orientam numa Casa Espíritas, são os mentores da Casa, são nossos mentores, são espíritos semelhantes em evolução? Como saber? Como você mesmo pondera, passando pelo crivo da razão, mas esta razão é como um programa de computador, para bem funcionar exige constantes atualizações. Como atualizar nossa razão? Através do estudo sério da Doutrina Espírita.
Obrigada pelo carinho e fico feliz que tenha gostado.
Bom Ano de 2009.
Bjs
Claudia

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