sábado, 17 de abril de 2010

Chico Xavier: o sincretismo além do filme

Médium de Uberaba criou um ‘espiritismo à brasileira’ ao inserir na prática da religião espírita valores absorvidos do catolicismo

17 de abril de 2010 | 16h 00

Sandra Jacqueline Stoll

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Visões. Filme não contempla construção da imagem pública nem sua obra literária. Foto: Ique Esteves/ Divulgação

A sedução do espiritismo na sociedade brasileira há muito se projeta na imprensa: sempre que o espiritismo figura como capa de revista, os índices de vendagem aumentam. O filme Chico Xavier, porém, parece ter superado expectativas, com sessões lotadas tanto em bairros de classe média como em cinemas de periferia.

Entretanto, ao contrário do que se pensa, Chico Xavier não representa unanimidade no mundo espírita. Ainda que seguido e admirado por milhões de brasileiros, é do meio espírita mais apegado às tradições kardecistas que vem pesada crítica a seu trabalho. Esse meio questiona a inserção que Chico Xavier fez, na prática da religião espírita, de valores que absorveu do catolicismo, criando assim um "espiritismo à brasileira". Baseado nos princípios e práticas do catolicismo, ele instaurou o que podemos chamar de uma "ética da santidade", consolidada em torno da prática da caridade que exerceu por mais de 70 anos e outros valores monásticos, como a pobreza e a castidade.

É importante, porém, ressalvar que Chico Xavier não criou tal modelo de forma pensada, para dar outra diretriz ao espiritismo no Brasil. Essa construção envolveu tensões políticas, doutrinárias e simbólicas que sua história de vida retrata: de um lado, viu-se envolvido em uma série de conflitos com a Igreja Católica, que não lhe poupou críticas; de outro, na busca de legitimação de sua autoridade acabou por reafirmar elementos simbólicos da identidade religiosa de origem, fortemente marcada por suas experiências de infância, vividas numa pequena cidade do interior de Minas Gerais.

O resultado dessa reinterpretação da doutrina de Allan Kardec causa ojeriza aos grupos que integram a vertente "científica" da doutrina. Mas será que o espiritismo ganharia a expressividade que tem hoje no Brasil se não fosse a força desse vínculo com a tradição católica? Talvez se diluísse como aconteceu na França depois de Kardec: lá, em meados do século 19, não chegou a ter grande expressão. Na verdade, o espiritismo no Brasil, em sua principal vertente, nunca conseguiu fugir do vínculo com o catolicismo. Antes de Chico Xavier, outro grande difusor da doutrina, Bezerra de Menezes, médico do Rio de Janeiro e primeiro presidente da Federação Espírita Brasileira, notabilizou-se pela introdução de símbolos e ritos católicos mesclados à pratica espírita. No caso de Bezerra de Menezes, é marcante sua devoção a Nossa Senhora e a inserção da Ave Maria nas sessões por ele presididas.

Chico Xavier, por sua vez, não se submeteu à hegemonia orgânica da Igreja Católica, mas inspirou a condução de sua vida pela dominação simbólica do catolicismo. Postura que lhe permitiu avançar a passos largos na construção de sua liderança no meio espírita, o que se deu entre os anos 40 e 50. Até então eram raros os líderes desse meio oriundos das classes populares. Chico Xavier conseguiu, porém, mais do que simplesmente romper a barreira de classe: sob sua liderança, o espiritismo se tornou a terceira opção religiosa do País.

Nesse sentido, ele é um marco na história do espiritismo brasileiro. Seu legado não se resume ao extraordinário volume de obras publicadas - mais de 400, com mais de 25 milhões de exemplares vendidos. Chico Xavier criou também modelos para a prática da caridade que servem de padrão de conduta tanto para os adeptos quanto para outros médiuns. Sua principal ocupação dos últimos anos - a produção de "cartas" dos mortos endereçadas aos familiares em processo de luto - angariou um sem-número de simpatizantes entre adeptos de outras religiões. Uberaba, cidade onde o médium morava, recebia semanalmente centenas de peregrinos vindos de diferentes partes do País e até do exterior. A maioria não se converteu, mas fazia coro com aqueles que viam em Chico Xavier um "homem santo".

Essa dimensão da construção de sua imagem pública infelizmente não é mostrada no filme. Este também não contempla adequadamente o trabalho literário de Chico Xavier.Nem sequer retrata de forma adequada o caráter inédito e polêmico de seu primeiro livro, Parnaso de Além-Túmulo, tema bem analisado na obra de Marcel Souto Maior, na qual se inspira o filme. A produção da série Nosso Lar, também omitida, teve papel fundamental na propagação de ideias a respeito da vida após a morte.

A propagação do mito Chico Xavier, após sua morte, também se assenta sobre elementos do rito católico, que acabam predominando - já que o espiritismo não tem uma simbologia de cerimonial religioso. Iniciaram-se peregrinações a seu túmulo, orações católicas em grupo (inclusive a Ave Maria), a crença em poderes milagrosos da água que brota de sua estátua no cemitério e o dito popular que "ele é um santo que está no céu". O que vem confirmar que a estruturação da mescla entre o catolicismo e a nova doutrina advém de uma raiz histórica e cultural muito profunda, cuja convertibilidade entre as categorias populares se faz orientada pelo ritual simbólico do catolicismo.

Está em curso o processo popular de santificação de Chico Xavier, a exemplo do que ocorreu com Padre Cícero e outros santos não canônicos. É nesse contexto que devemos olhar para o centenário do nascimento de Chico Xavier como um fenômeno além das expressões e interesses da mídia.

*Sandra Jacqueline Stoll é antropóloga, professora da Universidade Federal do Paraná (UfPR) e pesquisadora do Núcleo de Antropologia Urbana da USP

http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,chico-xavier-o-sincretismo-alem-do-filme,539626,0.htm


Um comentário:

Esperantrix disse...

Ué, não entendi onde foi que Chico inseriu o Catolicismo. Só porque ele era celibatário, não quer dizer que fez isso para agradar os católicos. Fez isso porque não teve tempo de ter uma relação amorosa. Psicografou mais de 400 livros e milhares de cartas!

Se ele era caridoso, não vejo o que isso é diferente da doutrina espírita de Kardec.

Tudo que ele fez está escrito nos livros de Kardec. Nada foi emprestado do Catolicismo. Só que há aspectos do Espiritismo nos livros de Kardec que são similares aos do Catolicismo. Só isso.

Não vi, no artigo, nenhum exemplo que contrariasse Kardec. Nem no filme, nem nas reportagens.
E não sei por que espíritas não podem rezar uma Ave Maria. Não entendi. Os espíritos mesmo às vezes rezam!
:-)
Acho que Chico foi um verdadeiro espírita. Se ele estivesse querendo agradar os católicos, não teria falado de espíritos e reencarnação.

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